Dou sequência aqui a uma série de textos que relatam a experiência de minha residência artística realizada em fevereiro e março de 2016, no Festival Dias de Música Electroacústica em Portugal, com o apoio do Programa Ibermúsicas. O principal resultado dessa residência foi a escrita e estreia da peça diáspora, para quarteto e sons eletrônicos. Veja também as postagens anteriores: #00, #01.
Acerca da ideia de diáspora e o comportamento dos materiais sonoros
A palavra grega diáspora, que pode ser entendida como dispersão, foi escolhida para se referir à dispersão do povo judeu no mundo antigo, há mais de 2000 anos em Alexandria, quando textos sagrados judaicos originalmente escritos em aramaico e hebraico foram traduzidos para o idioma grego, a língua oficial da época. Até o século XIX tal acepção desta palavra parece ter sido dominante. No entanto, mais recentemente a partir do século passado tem se tornado cada vez mais recorrente um uso mais generalizante desta palavra, referindo-se à dispersão de qualquer povo para além dos limites de seu território original. Atualmente, fala-se em diásporas de povos africanos, asiáticos, europeus, americanos, etc.
Quando cheguei a Portugal, o que mais se via nos televisores onipresentes em cafés e restaurantes eram notícias relacionadas à “crise de refugiados” na Europa: grandes contingentes de pessoas fugindo de uma situação atualmente bastante complicada no Oriente Médio. Embora muitos não entendam (ou não queiram entender) a questão em um contexto mais amplo, levando eventualmente a casos de preconceito, xenofobia e intolerância, uma visão mais retrospectiva e abrangente revela que este fenômeno de grandes migrações populacionais não é novo. Em um exemplo não muito distante, a primeira metade do século XX viu grandes contingentes de europeus migrarem para as Américas por conta de dificuldades enfrentadas em suas terras natais. No caso específico de Portugal, trata-se de um país onde a taxa de emigração é atualmente bastante alta se comparada a outros países europeus. Historicamente, a diáspora portuguesa é observada desde pelo menos o tempo das grandes navegações dos séculos XV e XVI. Pessoalmente, mesmo minha família paterna faz parte de uma grande migração portuguesa para o Brasil na década de 1960. Se por um lado, a diáspora de um povo produz afastamentos, também produz novos encontros, como é notável sobretudo nos países da América, cuja alta complexidade étnica é resultante de encontros de indivíduos de origens muitas vezes díspares, que em muitos casos seriam extremamente improváveis em seus países de origem (embora seja necessário não romantizar tais encontros, pois ocorrem muitas vezes em contextos múltiplos de opressão e violência explícita ou implícita). Esta ideia me pareceu atraente.
No entanto, em geral não me interesso por tentar impingir ao discurso musical uma narrativa “literária” ou mesmos forçar simbolismos que via de regra me parecem estranhos ao próprio material sonoro. Um pano de fundo metafórico, imagético, poético etc. acaba sendo-me frutífero como uma maneira de pensar tanto a constituição dos materiais sonoros quanto suas possíveis relações. Para tanto é necessária uma transmutação do discurso mais metafórico para elementos musicais concretos. Uma vez estabelecidos os materiais em sua concretude sonora, as metáforas ou eventuais narrativas saem do primeiro plano e é colocado em movimento um jogo sonoro mais abstrato (que pode ser entendido por outro lado como mais concreto, pois deixa de se referir a associações externas aos sons e passa a lidar com seus aspectos efetivamente sonoros). As sugestões poéticas permanecem, portanto apenas como uma sugestão difusa que instigará o publico na apreciação da obra.
Cheguei a duas tipologias de materiais sonoros: um primeiro material extremamente concentrado, tanto em tessitura quanto em energia e um segundo material mais rarefeito e disperso. A peça então oscila irregularmente entre os dois materiais, criando diversas situações intermediárias, explorando contrastes e ambiguidades. O primeiro material é apresentado logo no início na peça, como vemos na figura abaixo. Figuras rápidas, em sua maioria de tessitura reduzida e quase cromáticas, especialmente localizadas no violoncelo. Tais figuras vão sofrendo alterações ao longo da peça, tanto em sua densidade harmônica quanto temporal.
Partitura
de diáspora.
Compassos 1-3.
Já o segundo material busca a rarefação da textura, tanto no
aspecto temporal quanto na distribuição o material harmônico de
maneira dispersa pelo registro, buscando ressonâncias mais amplas.
Se no primeiro material, o violoncelo tem destaque, aqui via de regra
o piano assume o primeiro plano, talvez o instrumento nesta
combinação mais propício à escuta da ressonância. A figura
abaixo destaca um momento solista do piano, no qual se observa a
ampla
dispersão das alturas (notar os sinais de oitava acima na clave da
primeira linha e de oitava abaixo na clave da terceira), bem como a
distribuição relativamente esparsa dos ataques.
Partitura
de diáspora.
Compassos 93-95.
Ao
longo da peça, tais materiais acabarão por se transformar e se
influenciar mutuamente, de modo a constantemente renovar o interesse
da escuta, através de desvios e imprevisibilidades.
A concepção da parte eletrônica
A
relação entre sons eletrônicos e partes instrumentais também tira
proveito da lógica de concentração e dispersão. A relação tem
uma ambivalência: ao mesmo tempo que a eletrônica dispersa os sons
no espaço, distribuindo-os em oito canais independentes, ela também
acaba por densificar a textura sonora, concentrando mais eventos
sonoros no mesmo intervalo de tempo.
São
cinco texturas eletroacústicas disparadas ao longo da peça, todas
elas construídas a partir de samples instrumentais pré-gravados.
Toda a programação foi feita no ambiente de programação SuperCollider, tirando proveito de três objetos em especial
(SynthDef,
Routine e Pattern),
utilizados da seguinte maneira, descrita de forma simplificada:
Cada
SynthDef
(ou “definição de sintetizador”) toca samples específicos
retirados de uma pasta de arquivos específica, correspondendo a
samples de cada um dos instrumentos (violino, violoncelo, piano,
clarinete baixo), e os toca com algumas possibilidades de
manipulação.
Cada
uma das cinco texturas eletroacústicas corresponde então a uma
Routine
(“rotina”) disparada por um controlador MIDI em momentos precisos
indicados na partitura. Por sua vez, cada Routine
é subdividida em uma sequência de Patterns
(ou “padrões”), que estabelecem de que maneira exata os SynthDef
serão tocados (quais notas, durações, distribuição pelos oito
canais de áudio, etc.), mesclando tanto sequências determinadas
quanto variações randômicas dentro de conjuntos de valores.
Algo
interessante em relação a esta programação eletrônica, é que
embora os momentos em que as texturas eletroacústicas são
disparadas, bem como suas durações totais e subdivisões sejam
absolutamente fixos, os detalhes internos não são. Ou seja, muito embora os valores estejam calculados
para o efeito global ser sempre semelhante (uma certa “nuvem” de
sons, com contornos gerais identificáveis), há uma
certa imprevisibilidade na textura, cujas especificidades estão
programadas nos Patterns.
[...a ser continuado em breve na próxima postagem...]
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