quarta-feira, 13 de abril de 2016

diário da serra da estrela #01: escrita de uma nova peça para quarteto e eletrônica

Após uma primeira semana em Portugal centrada em apresentações públicas (veja o post anterior), teve início uma fase mais introspectiva: a composição de uma nova peça para grupo instrumental e eletrônica (objetivo principal de minha residência artística no Festival Dias de Música Electroacústica com o apoio do Programa Ibermúsicas).


Desde o momento em que escrevi o projeto desta residência, eu não quis definir uma instrumentação exata para a peça a ser escrita antes de chegar a Seia. Embora seja difícil avaliar até que ponto tal escolha foi produtiva para o processo composicional, eu queria aproveitar os primeiros dias de contato com os professores do conservatório que fazem parte do Ensemble DME para estabelecer relações iniciais, conversando com quem pudesse estar disposto e disponível naquele período para assumir este desafio de, em poucas semanas, ensaiar e estrear uma peça inédita, que ainda estava por ser escrita. 


 

 
Planejamento pré-composicional: o material harmônico 

Mesmo antes de decidir qual seria a instrumentação da peça, comecei a trabalhar em alguns materiais pré-composicionais mais abstratos. Desta maneira, eu poderia começara mapear os caminhos a serem percorridos pela composição antes mesmo de dar início à confecção da partitura propriamente dita. Os elementos escolhidos para o início ao trabalho foram a definição do material harmônico e o delineamento das proporções formais. 



Utilizei-me de estratégias semelhantes às que venho utilizando em algumas peças desde o trio para piano, violino e violoncelo resto do incêndio (2013), que a cada nova peça vão sendo retomadas com ligeiras modificações. Comecei por uma matriz intervalar que intercala intervalos fixos e móveis, que acaba por gerar 12 sequências de 50 notas cada, como no exemplo abaixo, que ilustra a primeira destas sequências utilizadas nesta peça.



Vale notar que as duas últimas notas da sequência correspondem exatamente às duas primeiras, indicando que se o processo fosse continuado, a sequência se repetiria de forma absolutamente igual. Por isso, a cada nova sequência mantenho os intervalos móveis, mas aumento os intervalos fixos em um semitom. Desta maneira, a segunda sequência terá a segunda maior como intervalo fixo, a terceira, a terça menor, a quarta, a terça maior e assim por diante, provocando uma distorção progressiva e contínua do material harmônico (a procedimentos assim dou o apelido de “LFO harmônico”, em referência aos Low Frequency Oscillators de sintetizadores eletrônicos que produzem flutuações sonoras com velocidades abaixo de 20 Hz). Algo que me parece interessante é que o intervalo escolhido para iniciar a sequência de intervalos móveis acaba por se tornar uma sonoridade-pivô que perpassa a peça. Em resto do incêndio (2013), escolhi como intervalo inicial a terça menor; em memorial do granito (2015) para piano e eletrônica, a terça maior; em rasgada [pocket poems] (2015), para voz e violino, a segunda maior. Para esta peça nova escolhi explorar a sonoridade da segunda menor (que acaba se tornando bastante característica nos gestos rápidos descendentes, quase cromáticos, que perpassam a parte do violoncelo em especial).

 
Outro aspecto: As proporções formais

 

A distribuição temporal do conteúdo harmônico é outro aspecto importante no planejamento de minhas peças. Geralmente, busco organizar as proporções temporais de minhas composições através da manipulação de sequências de números primos. Falando de maneira bastante rápida, os números primos interessam-me sobretudo por serem elementos racionais (afinal são números, quantidades abstratas) que de alguma maneira resistem à sua apreensão pela razão. Do ponto de vista matemático, estão presentes em problemas até hoje não solucionados, como a hipótese de Riemann (que não entraremos em detalhes aqui). Já em um contexto musical, são capazes de gerar irregularidades muito interessantes, ao mesmo tempo calculadas e imprevisíveis na percepção. Por exemplo, entre duas frases seguidas, uma de 13 tempos outra de 11, nosso ouvido quer encontrar uma simetria, que acaba escapando como se houvesse uma ligeira distorção.
A estratégia de utilizar números primos para organizar as divisões e subdivisões, em diversas escalas da forma musical, tem se revelado para mim um caminho bastante rico de possibilidades, que experimentei pela primeira vez em 2008, em liederschaflich, peça escrita para piano e violino, construída a partir de alguns fragmentos de obras de Franz Schubert. Desde então tem sido um elemento recorrente em quase todos os meus trabalhos. De 2013 em diante, comecei a investir também em “acidentes formais”, que seriam desvios nas sequências de números primos provocados por embaralhamentos aleatórios destes números (embora seja um procedimento relativamente simples, acabo fazendo tais sorteios por computador, pela rapidez e facilidade de repetir o sorteio). Porém, vale ressaltar que não atribuo uma autoridade excessiva ao processo de sorteio, não tendo qualquer restrição em repetir um sorteio caso o resultado definitivamente não me pareça adequado, ou mesmo realizar modificações arbitrárias nos resultados, de acordo com critérios mais musicalmente intuitivos (interessante como após alguns trabalhando com sequências numéricas, desenvolve-se um certo "ouvido" para elas). 
Não há portanto qualquer crença “mágica” de que procedimentos aleatórios possam trazer resultados melhores ou piores do que seriam obtidos sem eles. São apenas estímulos externos que introduzo em meu processo de composição que, muitas vezes, acabam por me sugerir opções fora de uma certa “zona de conforto”, afinal conforme vai se acumulando uma experiência prática em uma atividade é natural que, mesmo que inconscientemente, certos caminhos e soluções que parecem “dar certo” ou “funcionar” acabam por se tornar recorrentes, podendo tornar-se repetitivos e previsíveis.


 

Convocando os instrumentistas

Em paralelo a estas especulações mais abstratas, fui arregimentando o Ensemble DME e cheguei à seguinte formação: Carlos Silva (clarinete baixo), Hugo Passeira (piano), José Pedro Sousa (violoncelo) e Ludovic Afonso (violino) para atuarem como instrumentistas. No entanto, seria necessário ainda cumprir duas funções: reger o grupo e disparar os sons eletrônicos que eu viria a programar. 

[...a ser continuado em breve na próxima postagem...]

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