segunda-feira, 18 de abril de 2016

diário da serra da estrela #02: ideias e materiais para a nova peça



Dou sequência aqui a uma série de textos que relatam a experiência de minha residência artística realizada em fevereiro e março de 2016, no Festival Dias de Música Electroacústica em Portugal, com o apoio do Programa Ibermúsicas. O principal resultado dessa residência foi a escrita e estreia da peça diáspora, para quarteto e sons eletrônicos. Veja também as postagens anteriores: #00, #01.

Acerca da ideia de diáspora e o comportamento dos materiais sonoros 
 
A palavra grega diáspora, que pode ser entendida como dispersão, foi escolhida para se referir à dispersão do povo judeu no mundo antigo, há mais de 2000 anos em Alexandria, quando textos sagrados judaicos originalmente escritos em aramaico e hebraico foram traduzidos para o idioma grego, a língua oficial da época. Até o século XIX tal acepção desta palavra parece ter sido dominante. No entanto, mais recentemente a partir do século passado tem se tornado cada vez mais recorrente um uso mais generalizante desta palavra, referindo-se à dispersão de qualquer povo para além dos limites de seu território original. Atualmente, fala-se em diásporas de povos africanos, asiáticos, europeus, americanos, etc.

Quando cheguei a Portugal, o que mais se via nos televisores onipresentes em cafés e restaurantes eram notícias relacionadas à “crise de refugiados” na Europa: grandes contingentes de pessoas fugindo de uma situação atualmente bastante complicada no Oriente Médio. Embora muitos não entendam (ou não queiram entender) a questão em um contexto mais amplo, levando eventualmente a casos de preconceito, xenofobia e intolerância, uma visão mais retrospectiva e abrangente revela que este fenômeno de grandes migrações populacionais não é novo. Em um exemplo não muito distante, a primeira metade do século XX viu grandes contingentes de europeus migrarem para as Américas por conta de dificuldades enfrentadas em suas terras natais. No caso específico de Portugal, trata-se de um país onde a taxa de emigração é atualmente bastante alta se comparada a outros países europeus. Historicamente, a diáspora portuguesa é observada desde pelo menos o tempo das grandes navegações dos séculos XV e XVI. Pessoalmente, mesmo minha família paterna faz parte de uma grande migração portuguesa para o Brasil na década de 1960. Se por um lado, a diáspora de um povo produz afastamentos, também produz novos encontros, como é notável sobretudo nos países da América, cuja alta complexidade étnica é resultante de encontros de indivíduos de origens muitas vezes díspares, que em muitos casos seriam extremamente improváveis em seus países de origem (embora seja necessário não romantizar tais encontros, pois ocorrem muitas vezes em contextos múltiplos de opressão e violência explícita ou implícita). Esta ideia me pareceu atraente. 
No entanto, em geral não me interesso por tentar impingir ao discurso musical uma narrativa “literária” ou mesmos forçar simbolismos que via de regra me parecem estranhos ao próprio material sonoro. Um pano de fundo metafórico, imagético, poético etc. acaba sendo-me frutífero como uma maneira de pensar tanto a constituição dos materiais sonoros quanto suas possíveis relações. Para tanto é necessária uma transmutação do discurso mais metafórico para elementos musicais concretos. Uma vez estabelecidos os materiais em sua concretude sonora, as metáforas ou eventuais narrativas saem do primeiro plano e é colocado em movimento um jogo sonoro mais abstrato (que pode ser entendido por outro lado como mais concreto, pois deixa de se referir a associações externas aos sons e passa a lidar com seus aspectos efetivamente sonoros). As sugestões poéticas permanecem, portanto apenas como uma sugestão difusa que instigará o publico na apreciação da obra. 
Cheguei a duas tipologias de materiais sonoros: um primeiro material extremamente concentrado, tanto em tessitura quanto em energia e um segundo material mais rarefeito e disperso. A peça então oscila irregularmente entre os dois materiais, criando diversas situações intermediárias, explorando contrastes e ambiguidades. O primeiro material é apresentado logo no início na peça, como vemos na figura abaixo. Figuras rápidas, em sua maioria de tessitura reduzida e quase cromáticas, especialmente localizadas no violoncelo. Tais figuras vão sofrendo alterações ao longo da peça, tanto em sua densidade harmônica quanto temporal. 

  Partitura de diáspora. Compassos 1-3.
 
Já o segundo material busca a rarefação da textura, tanto no aspecto temporal quanto na distribuição o material harmônico de maneira dispersa pelo registro, buscando ressonâncias mais amplas. Se no primeiro material, o violoncelo tem destaque, aqui via de regra o piano assume o primeiro plano, talvez o instrumento nesta combinação mais propício à escuta da ressonância. A figura abaixo destaca um momento solista do piano, no qual se observa a ampla dispersão das alturas (notar os sinais de oitava acima na clave da primeira linha e de oitava abaixo na clave da terceira), bem como a distribuição relativamente esparsa dos ataques.



Partitura de diáspora. Compassos 93-95.


Ao longo da peça, tais materiais acabarão por se transformar e se influenciar mutuamente, de modo a constantemente renovar o interesse da escuta, através de desvios e imprevisibilidades.
A concepção da parte eletrônica
A relação entre sons eletrônicos e partes instrumentais também tira proveito da lógica de concentração e dispersão. A relação tem uma ambivalência: ao mesmo tempo que a eletrônica dispersa os sons no espaço, distribuindo-os em oito canais independentes, ela também acaba por densificar a textura sonora, concentrando mais eventos sonoros no mesmo intervalo de tempo.

São cinco texturas eletroacústicas disparadas ao longo da peça, todas elas construídas a partir de samples instrumentais pré-gravados. Toda a programação foi feita no ambiente de programação SuperCollider, tirando proveito de três objetos em especial (SynthDef, Routine e Pattern), utilizados da seguinte maneira, descrita de forma simplificada:

Cada SynthDef (ou “definição de sintetizador”) toca samples específicos retirados de uma pasta de arquivos específica, correspondendo a samples de cada um dos instrumentos (violino, violoncelo, piano, clarinete baixo), e os toca com algumas possibilidades de manipulação.

Cada uma das cinco texturas eletroacústicas corresponde então a uma Routine (“rotina”) disparada por um controlador MIDI em momentos precisos indicados na partitura. Por sua vez, cada Routine é subdividida em uma sequência de Patterns (ou “padrões”), que estabelecem de que maneira exata os SynthDef serão tocados (quais notas, durações, distribuição pelos oito canais de áudio, etc.), mesclando tanto sequências determinadas quanto variações randômicas dentro de conjuntos de valores.

Algo interessante em relação a esta programação eletrônica, é que embora os momentos em que as texturas eletroacústicas são disparadas, bem como suas durações totais e subdivisões sejam absolutamente fixos, os detalhes internos não são. Ou seja, muito embora os valores estejam calculados para o efeito global ser sempre semelhante (uma certa “nuvem” de sons, com contornos gerais identificáveis), há uma certa imprevisibilidade na textura, cujas especificidades estão programadas nos Patterns.
[...a ser continuado em breve na próxima postagem...]

quarta-feira, 13 de abril de 2016

diário da serra da estrela #01: escrita de uma nova peça para quarteto e eletrônica

Após uma primeira semana em Portugal centrada em apresentações públicas (veja o post anterior), teve início uma fase mais introspectiva: a composição de uma nova peça para grupo instrumental e eletrônica (objetivo principal de minha residência artística no Festival Dias de Música Electroacústica com o apoio do Programa Ibermúsicas).


Desde o momento em que escrevi o projeto desta residência, eu não quis definir uma instrumentação exata para a peça a ser escrita antes de chegar a Seia. Embora seja difícil avaliar até que ponto tal escolha foi produtiva para o processo composicional, eu queria aproveitar os primeiros dias de contato com os professores do conservatório que fazem parte do Ensemble DME para estabelecer relações iniciais, conversando com quem pudesse estar disposto e disponível naquele período para assumir este desafio de, em poucas semanas, ensaiar e estrear uma peça inédita, que ainda estava por ser escrita. 


 

 
Planejamento pré-composicional: o material harmônico 

Mesmo antes de decidir qual seria a instrumentação da peça, comecei a trabalhar em alguns materiais pré-composicionais mais abstratos. Desta maneira, eu poderia começara mapear os caminhos a serem percorridos pela composição antes mesmo de dar início à confecção da partitura propriamente dita. Os elementos escolhidos para o início ao trabalho foram a definição do material harmônico e o delineamento das proporções formais. 



Utilizei-me de estratégias semelhantes às que venho utilizando em algumas peças desde o trio para piano, violino e violoncelo resto do incêndio (2013), que a cada nova peça vão sendo retomadas com ligeiras modificações. Comecei por uma matriz intervalar que intercala intervalos fixos e móveis, que acaba por gerar 12 sequências de 50 notas cada, como no exemplo abaixo, que ilustra a primeira destas sequências utilizadas nesta peça.



Vale notar que as duas últimas notas da sequência correspondem exatamente às duas primeiras, indicando que se o processo fosse continuado, a sequência se repetiria de forma absolutamente igual. Por isso, a cada nova sequência mantenho os intervalos móveis, mas aumento os intervalos fixos em um semitom. Desta maneira, a segunda sequência terá a segunda maior como intervalo fixo, a terceira, a terça menor, a quarta, a terça maior e assim por diante, provocando uma distorção progressiva e contínua do material harmônico (a procedimentos assim dou o apelido de “LFO harmônico”, em referência aos Low Frequency Oscillators de sintetizadores eletrônicos que produzem flutuações sonoras com velocidades abaixo de 20 Hz). Algo que me parece interessante é que o intervalo escolhido para iniciar a sequência de intervalos móveis acaba por se tornar uma sonoridade-pivô que perpassa a peça. Em resto do incêndio (2013), escolhi como intervalo inicial a terça menor; em memorial do granito (2015) para piano e eletrônica, a terça maior; em rasgada [pocket poems] (2015), para voz e violino, a segunda maior. Para esta peça nova escolhi explorar a sonoridade da segunda menor (que acaba se tornando bastante característica nos gestos rápidos descendentes, quase cromáticos, que perpassam a parte do violoncelo em especial).

 
Outro aspecto: As proporções formais

 

A distribuição temporal do conteúdo harmônico é outro aspecto importante no planejamento de minhas peças. Geralmente, busco organizar as proporções temporais de minhas composições através da manipulação de sequências de números primos. Falando de maneira bastante rápida, os números primos interessam-me sobretudo por serem elementos racionais (afinal são números, quantidades abstratas) que de alguma maneira resistem à sua apreensão pela razão. Do ponto de vista matemático, estão presentes em problemas até hoje não solucionados, como a hipótese de Riemann (que não entraremos em detalhes aqui). Já em um contexto musical, são capazes de gerar irregularidades muito interessantes, ao mesmo tempo calculadas e imprevisíveis na percepção. Por exemplo, entre duas frases seguidas, uma de 13 tempos outra de 11, nosso ouvido quer encontrar uma simetria, que acaba escapando como se houvesse uma ligeira distorção.
A estratégia de utilizar números primos para organizar as divisões e subdivisões, em diversas escalas da forma musical, tem se revelado para mim um caminho bastante rico de possibilidades, que experimentei pela primeira vez em 2008, em liederschaflich, peça escrita para piano e violino, construída a partir de alguns fragmentos de obras de Franz Schubert. Desde então tem sido um elemento recorrente em quase todos os meus trabalhos. De 2013 em diante, comecei a investir também em “acidentes formais”, que seriam desvios nas sequências de números primos provocados por embaralhamentos aleatórios destes números (embora seja um procedimento relativamente simples, acabo fazendo tais sorteios por computador, pela rapidez e facilidade de repetir o sorteio). Porém, vale ressaltar que não atribuo uma autoridade excessiva ao processo de sorteio, não tendo qualquer restrição em repetir um sorteio caso o resultado definitivamente não me pareça adequado, ou mesmo realizar modificações arbitrárias nos resultados, de acordo com critérios mais musicalmente intuitivos (interessante como após alguns trabalhando com sequências numéricas, desenvolve-se um certo "ouvido" para elas). 
Não há portanto qualquer crença “mágica” de que procedimentos aleatórios possam trazer resultados melhores ou piores do que seriam obtidos sem eles. São apenas estímulos externos que introduzo em meu processo de composição que, muitas vezes, acabam por me sugerir opções fora de uma certa “zona de conforto”, afinal conforme vai se acumulando uma experiência prática em uma atividade é natural que, mesmo que inconscientemente, certos caminhos e soluções que parecem “dar certo” ou “funcionar” acabam por se tornar recorrentes, podendo tornar-se repetitivos e previsíveis.


 

Convocando os instrumentistas

Em paralelo a estas especulações mais abstratas, fui arregimentando o Ensemble DME e cheguei à seguinte formação: Carlos Silva (clarinete baixo), Hugo Passeira (piano), José Pedro Sousa (violoncelo) e Ludovic Afonso (violino) para atuarem como instrumentistas. No entanto, seria necessário ainda cumprir duas funções: reger o grupo e disparar os sons eletrônicos que eu viria a programar. 

[...a ser continuado em breve na próxima postagem...]