terça-feira, 21 de janeiro de 2014

aquilo que não se deixa incinerar



                                                                                                           foto: Julio Kohl




Terra, resto de incêndio. Substrato para pés, plantas e casas, originado de tudo aquilo que resiste a se purificar pela violência do fogo. Parece-me necessário cuidar disto que não tem por natureza incinerar-se, isto que teimosamente permanece. Trata-se de uma escolha que não se pode subjugar pelo racional nem pelo consciente, entranhada que está nos limites da própria matéria e a faz se entregar menos que por inteiro, impedida por uma inércia mineral peculiar.

 
Ao ser convidado para escrever resto do incêndio (2013) para o excelente Epifania Piano Trio (Alberto Kanji ao violoncelo, Felipe Scagliusi ao piano e Simona Cavuoto ao violino), veio-me à mente o ano do dragão que foi 2012, despejando sua cólera ígnea sobre favelas da capital paulista em incômoda consonância com porções de terra cobiçadas pela especulação do capital. Apesar da reminiscência de ícones ancestrais de fertilidade nos falos de concreto, estes não celebram pulsões coletivas de vida, sendo antes bloqueios estéreis à fluidez das relações horizontais que eventualmente houvesse nos bolsões de moradia precária, agora reduzidos a cinzas. Edifícios moldados pela lógica bruta da exclusão, totens que simbolizam antes o terror que o amor ao próximo (feito distante pelas muralhas dos bunkers citadinos, que o eufemismo mercadológico designamoradias de alto padrão”).

Partindo da premissa absurda de encontrar correlatos processuais e formais para esta imagética densa, desejei uma dialética não-narrativa entre os modos de atuação dos elementos fogo e terra, tensionando entre irrupções gestuais e permanências prolongadas. Por isso, interessei-me por acidentes formais (inesperados à percepção, embora premeditados na estrutura) e fiz durações de seções, suas subdivisões e densidades serem moldadas pela indiferença fria de sorteios eletrônicos. Às arbitrariedades e incongruências resultantes permiti operar sobre um desenvolvimento harmônico orgânico, progressivo e linear, calcado na evolução bidimensional de um único ciclo intervalar. Daí em diante, o artesanato ficou livre para encontrar seus próprios caminhos, revelando-se em texturas rarefeitas e polifonias intrincadas.


Uma bela estreia de resto do incêndio aconteceu pelas mãos cuidadosas do Epifania Piano Trio no dia 5 de dezembro de 2013, durante o festival Música Estranha!. Em fevereiro de 2014, o álbum 3+2/SP, do qual a peça faz parte, será oficialmente lançado, incluindo peças de compositores talentosos como Marcus Siqueira, Maurício de Bonis, Rodrigo Lima e Thiago Cury. Então preparem-se: um belo concerto de lançamento está a caminho!



 

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