Por canto nenhum pode-se entender lugar nenhum, tradução possível para palavra antiga: utopia. Pode ser também uma voz ausente. Nesse caso, serve de modelo o aboio: mais grito que canto, usado pra chamar o gado. Não escutado por humanos talvez não seja exatamente música. Quem sabe por isso mesmo algo mais: a comunicação possível entre homem e natureza, o que nos leva de volta ao terreno da utopia.
Os aboios tomados como ponto de partida são alguns dos coletados por Mário de Andrade em suas missões folclóricas. Inspirado mais pela ligação ancestral entre o homem e o gado apontada por Terence McKenna em seu livro Alimento dos Deuses, que por qualquer demagogia nacionalista, tomei os aboios como objetos sonoros. Escutei-os repetidas vezes, anotando as diferentes feições de seus inícios, sustentações e terminações para daí derivar figuras musicais que me ajudariam trazer para o plano da escuta uma estrutura abstrata formada por proporções de números primos e por desdobramentos intervalares específicos de um único acorde (em um procedimento que apelidei de "LFO harmônico").
[resumo das variações morfológicas encontradas nas gravações dos aboios] |
Esta peça foi estreada em 2009 como parte da programação do 40º Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. Nesse festival, essa peça recebeu o Prêmio Camargo Guarnieri de Composição. É um prazer reouvir canto nenhum, mais de quatro anos depois com a Camerata Aberta, sob regência de Felix Krieger, dia 29 de outubro às 21h no SESC Consolação.
Para quem quiser relembrar ou já ir conhecendo um pouco mais a peça, este é um vídeo do concerto de estreia:
PS: Pessoalmente, a investigação poética da comunicação entre dois mundos proposta nessa peça ganha uma nuance particularmente dramática pelo fato de que, em meio ao processo de composição da peça, minha querida avó Janina ter cruzado o limiar deste mundo que conhecemos. Por isso, a partitura carrega uma dedicatória em seu nome.